Prestadores de serviço optantes pelo Simples Nacional e a cobrança de ISS
A competência para a cobrança de um imposto específico sobre a prestação de serviços de qualquer natureza foi prevista pela Constituição Federal de 1988, que a atribuiu aos municípios e ao Distrito Federal por meio do inciso III do seu artigo 156, cuja redação, dada pela Emenda Constitucional 3/1993, restringe essa competência à tributação dos “serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar”. Dessa forma, o constituinte delimitou qual seria o campo de materialidade que poderia ser atingido por aqueles entes federados por meio da cobrança do Imposto sobre Serviços (ISS): todos os serviços que estivessem previstos em lei complementar de caráter nacional, com exceção dos serviços de comunicação e de transporte interestadual e intermunicipal, que estão sujeitos à cobrança do ICMS, de competência dos estados e do Distrito Federal.
Observe que, ao atribuir à lei complementar de caráter nacional a competência para definir quais são os serviços de qualquer natureza que fazem parte do campo material atingível pela cobrança de ISS, o constituinte reforçou uma das funções atribuídas pelo artigo 146, inciso III, alínea “a” do texto constitucional a esse tipo de documento normativo: o de definir fatos geradores dos impostos previstos na Constituição. Função essa atualmente exercida pela Lei Complementar 116, de 31 de julho de 2003, que veicula uma lista de quais atividades podem ser consideradas como prestações de serviços tributáveis por meio do ISS.
Por um lado, é importante lembrar que, para que um fato concreto que corresponde à descrição de um serviço contido na lista anexa àquela lei complementar possa ser tributado por meio do ISS, ainda é necessário que apresente outros elementos que o identifique como uma prestação de serviço tributável por meio desse imposto. De acordo com a proposta do professor Aires F. Barreto, seria imprescindível que se verificasse “o desempenho de atividade economicamente apreciável, sem subordinação, produtiva de utilidade para outrem, sob regime de direito privado, com fito de remuneração”[1]. Ou seja, seria necessário que, naquela prestação de serviço, (i) houvesse ao menos dois sujeitos envolvidos, sendo um prestador que faça a atividade física ou intelectual em benefício de um tomador; (ii) que não houvesse relação de subordinação entre esses dois sujeitos; (iii) que existisse conteúdo econômico atrelado à essa atividade pelo prestador, manifesta no pagamento a ser efetuado pelo tomador; (iv) e que essa relação jurídica fosse constituída sob o regime de direito privado.
Por outro lado, ainda é imprescindível lembrar que, de acordo com o entendimento do Supremo Tribunal Federal[2], a lista de atividades prevista em lei complementar nacional para definir o campo de tributação do ISS possui caráter taxativo, o que significa dizer que a competência tributária dos municípios e do Distrito Federal para instituir e cobrar o ISS somente pode ser exercida sobre as atividades delimitadas naquela lista. Em outras palavras, ainda que um município verifique a ocorrência, em seu território, de algum fato que possa corresponder ao conceito de prestação de serviços mencionado anteriormente, caso não haja uma descrição, na lista de atividades anexa à LC 116/2003, que corresponda a esse fato, esse município não poderá instituir e cobrar ISS sobre tal fato.
Além disso, não basta que aquela lei complementar preveja determinado fato como atividade tributável por meio do ISS para que um município possa cobrar esse imposto toda vez que esse fato for praticado em seu território. Para poder exercer essa competência tributária, é necessário que o município edite lei ordinária municipal instituindo a cobrança do ISS sobre aquela atividade, como determina o princípio constitucional da legalidade tributária, previsto no artigo 150, inciso I da CF[3].
Essas considerações iniciais sobre as condições que devem ser cumpridas por um município que deseje cobrar ISS sobre determinada atividade são importantes para a análise da legalidade da cobrança desse imposto neste ano de 2018. Assim se afirma em razão da publicação, no final de dezembro de 2016, da Lei Complementar 157, que, tendo caráter nacional, incluiu novas atividades na lista anexa à LC 116/2003. Com isso, várias atividades que antes não poderiam ser tributadas por meio do ISS passaram a ser consideradas como prestações de serviços atingíveis pela cobrança desse imposto municipal.
Contudo, essa redefinição dos limites do campo de materialidades tributáveis por meio do ISS feita pela LC 157/2016 não fez nascer, automaticamente, para todos os municípios e para o Distrito Federal, o direito de cobrar ISS sobre aquelas atividades. Como dito anteriormente, a legislação complementar nacional que define o fato gerador do ISS não é fundamento de validade suficiente para a instituição e a cobrança desse tributo municipal.
Para que um município ou o Distrito Federal possa cobrar ISS sobre essas novas atividades, é necessário que atualize a lei que atualmente preveja a instituição e a cobrança desse imposto em seu território, incluindo todas elas no rol de atividades que serão tributadas por ele. É somente com a edição dessa nova lei municipal que esse ente estará instituindo a cobrança do ISS sobre essas atividades, com a aplicação do já mencionado princípio da legalidade tributária. Mas também não basta a publicação dessa lei atualizadora para que a tributação dessas novas atividades possa ser iniciada: em respeito aos princípios constitucionais da anterioridade e da anterioridade nonagesimal, previstos, respectivamente, nas alíneas “b” e “c” do inciso III do artigo 150 da CF, somente após o início do exercício financeiro seguinte àquele no qual a lei atualizadora foi publicada e também após o transcurso de 90 dias da data dessa publicação é que poderá ser cobrado o ISS sobre alguma dessas atividades no território desse município.
Portanto, nos municípios brasileiros que não fizeram tal atualização em sua legislação durante o exercício de 2017, a concretização dessas novas atividades em seus territórios ainda estará no campo da não incidência do ISS[4] neste ano de 2018, já que tais municípios não previram a ocorrência de tais fatos como hipótese para a incidência desse imposto. Como consequência, tais municípios não poderão exigir, dos sujeitos que as realizarem, o cumprimento de qualquer obrigação tributária, seja de caráter principal, como é o pagamento do próprio ISS, seja de caráter assessório, como seria a emissão de documento fiscal para registrar a sua prestação em benefício de um tomador.
Essa impossibilidade de exigência do ISS sobre essas atividades por parte de tais municípios pode ser resolvida sem maiores dificuldades quando a pessoa física ou jurídica que exerce alguma delas é um prestador de serviço que estaria sujeito a um regime “geral” de tributação e, em razão disso, poderia estar obrigado a declarar diretamente à administração municipal as receitas obtidas com as suas atividades para a apuração de eventual valor de ISS. Não havendo, na lei municipal, previsão da incidência do ISS sobre essas atividades, não há que se falar na aplicação desse regime geral sobre esse prestador de serviços. Entretanto, algumas dificuldades podem surgir se esses prestadores estiverem sujeitos ao regime de tributação do Simples Nacional.
De acordo com o artigo 13, inciso VIII da Lei Complementar 123, de 14 de dezembro de 2006, o recolhimento mensal do ISS faz parte do regime tributário do Simples Nacional. Em razão disso, a pessoa jurídica que for optante por esse regime de tributação e que for prestadora de alguma dessas novas atividades que foram consideradas pela LC 157/2016 como tributáveis por meio desse imposto municipal, ao se identificar como prestador de serviço no Programa Gerador do Documento de Arrecadação do Simples Nacional (PGDAS-D) e declarar o valor das receitas que obteve em razão da realização de alguma dessas atividades, verificará a realização automática, por esse sistema, do cálculo do valor do ISS incidente sobre essas receitas, conforme as regras prescritas pela legislação nacional. Caso esse prestador de serviço confirme essa declaração e gere o documento único de arrecadação do Simples Nacional com a inclusão desses valores, estará recolhendo, em favor do município que foi identificado naquele sistema como competente para a cobrança do ISS que foi calculado, o valor de um imposto que aquele município não poderia receber, posto que, como já dito, não publicou lei instituindo a sua cobrança sobre essa atividade. Haverá, portanto, o recolhimento indevido de ISS em favor desse município.
Diante desse cenário, cabe às empresas optantes pelo Simples Nacional que são prestadoras de uma dessas atividades que passaram a ser consideradas como tributáveis por meio do ISS após a publicação da LC 157/2016 e que estariam sujeitas à competência tributária de um município que ainda não incluiu essas novas atividades nas hipóteses de incidência do ISS cobrado em seu território pleitear, por meio do processo administrativo ou judicial, o reconhecimento do seu direito de não recolher o ISS sobre a receita obtida com essas atividades, tendo como fundamento a falta de legislação municipal instituindo a cobrança desse imposto sobre elas, tal como explicado na parte inicial deste artigo. Trata-se do direito ao reconhecimento de que não existe relação jurídico-tributária entre esse prestador de serviço e a Fazenda Pública do município que não previu a incidência do ISS sobre a prática da atividade que é exercida por esse prestador.
Além disso, caso a pessoa jurídica já tenha recolhido valores de ISS junto com o valor dos demais tributos apurados no regime do Simples Nacional em relação a receitas recebidas a partir de janeiro de 2018 com essas novas atividades, será possível pleitear, junto ao reconhecimento da inexistência de relação jurídico-tributária entre ela e a Fazenda Pública municipal, a restituição desses valores de ISS recolhidos indevidamente, tendo como fundamento legal os parágrafos 5º e 6º do artigo 21 da LC 123/2006 e os artigos 117 e 118 da Resolução CGSN 94/2001.
Em resumo, a opção de um prestador de serviços pelo regime de tributação do Simples Nacional, cujo objetivo é ter um tratamento diferenciado e mais simplificado[5], não pode impor às pessoas jurídicas que prestem uma das atividades que foram incluídas pela LC 157/2016 na lista anexa à LC 116/2003 a obrigatoriedade de recolher indevidamente o Imposto sobre Serviços a um município que não tenha atualizado sua legislação própria para instituir a cobrança desse imposto sobre a realização daquelas atividades em seu território.
Contudo, diante do cálculo automático que é feito pelo sistema PGDAS-D sobre os valores de receitas de serviços declaradas pela empresa prestadora, é necessário buscar, administrativa ou judicialmente, o reconhecimento da inexistência de relação jurídico-tributária com a Fazenda Pública desse município. Somente com base nessa decisão essa pessoa jurídica poderá informar, naquele sistema, a existência de norma jurídica individual e concreta que fundamente a não realização do cálculo de valor de ISS sobre as receitas obtidas com essas novas atividades e declaradas para fins de recolhimento dos demais tributos que compõem o Simples Nacional enquanto o município que teria competência para tributar essas receitas não instituir a cobrança de ISS sobre tais atividades.
Por Francielli Honorato Alves
"[1] BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na Lei. 3 ed. São Paulo: Dialética, 2009, p. 35.
[2] Desde 1973, o STF já possui decisão no sentido da taxatividade dessa lista: “(...) II. Aplicação do Decreto-Lei n. 406/68, com a redação que lhe atribuiu o Decreto-Lei n. 834/69, art. 3, VIII. III. A lista a que se referem o art. 24, II da Constituição, e 8 do Decreto-Lei n. 83/69 é taxativa, embora cada item da relação comporte interpretação ampla e analógica (...)” (STF, RE 75.952/SP, 2ª Turma, rel. min. Thompson Flores, j. 29/10/1973, DJ 2/1/1974, grifo nosso). Em julgamento de 2010, foi reconhecida repercussão geral sobre tal matéria: TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS – ISS. ARTIGO 156, III, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. LISTA DE SERVIÇOS. DECRETO-LEI 406/1968 E LC 116/2003. TAXATIVIDADE. EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL (STF, RE 615.580 RG/RJ, Tribunal Pleno, rel. min. Ellen Gracie, 13/8/2010, DJe 20/8/2010).
[3] “(...) A competência tributária pode ser colocada no plano da atividade tributária em sentido primário (abstrato, legislativo), sendo lógica e cronologicamente anterior ao nascimento do tributo. Deveras, o tributo só vai irromper, in concreto, quando, tendo uma lei traçado, cuidadosamente, todos os aspectos da norma jurídica tributária, verifica-se, no mundo fenomênico, o fato imponível (fato gerador in concreto)” (CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 30 ed. rev., ampl. e atual. até a Emenda Constitucional 84/2014. São Paulo: Malheiros Editores, 2015, p. 596).
[4] “Percebe-se que a chamada ‘incidência jurídica’ se reduz, pelo prisma lógico, a duas operações formais: a primeira, de subsunção ou inclusão de classes, em que se reconhece que uma ocorrência concreta, localizada num determinado ponto do espaço social e numa específica unidade de tempo, inclui-se na classe dos fatos previstos no suposto da norma geral e abstrata; outra, a segunda, de implicação, porquanto a fórmula normativa prescreve que o antecedente implica a tese, vale dizer, o fato concreto, ocorrido hic et nunc, faz surgir uma relação jurídica também determinada, entre dois ou mais sujeitos de direito.” (CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 31). Sendo assim, sem a previsão de determinado fato como hipótese para a incidência de uma norma jurídica geral e tributária que tenha como consequente a cobrança do ISS, não há que se falar em incidência desse tributo.
[5] Artigo 146, III, “d” da Constituição Federal."